Por: Antonio Mazzucco, Luiz Gustavo Doles e Fernanda Lazzarini
Em um cenário de mudança de governo vale ressaltar avanços havidos na legislação comercial do Brasil com vistas ao fortalecimento da iniciativa privada em contraposição ao estatismo econômico. Esses avanços resultaram da chamada Lei da Liberdade Econômica, como passou a ser conhecida a Lei 13.378, editada em 03/10/2019 (“LLE”).
A LLE instituiu a chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica com o propósito de resolver eventuais limitações de natureza normativa ao empreendedorismo. A LLE trouxe alterações significativas às regras relativas às sociedades comerciais que vale a pena relembrarmos. Essa declaração estabelece como princípios: (i) a liberdade no exercício das atividades econômicas, (ii) a boa-fé do particular perante o Poder Público, (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado na atividade econômica; e (iv) a vulnerabilidade do particular perante o Estado.
Tivemos também, em 26/8/2021, a promulgação da Lei 14.195, a chamada Lei da Melhoria do Ambiente de Negócios (“LAN”). Essa lei trata de diversos assuntos e trouxe inúmeras modificações ao direito comercial, particularmente ao direito societário com alterações à Lei 6.404/76, a chamada Lei das Sociedades Anônimas (“LSA”).
Tanto a LLE quanto a LAN representaram um grande avanço em matéria comercial seja para grandes empresas seja para pequenos e médios empresários que são os grandes geradores de empregos e de renda no país.
Sociedade Unipessoal
A LLE, em seu Artigo 7º, alterou o Artigo 1.052 do Código Civil e resolveu um dos entraves existentes à época da sua edição que consistia na exigência de pluralidade de sócios para constituição da sociedade limitada, salvo no caso de aporte mínimo do capital social mínimo na chamada EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). Ou seja, a exceção à exigência de pluralidade de sócios era a EIRELI que, por sua vez, exigia aporte mínimo de capital em valor significativo para o pequeno empresário (cem salários-mínimos).
A alteração do Artigo 1.052 do Código Civil permitiu que a sociedade limitada possa ser constituída por uma única ou mais pessoa. Na prática, essa possibilidade se estende a pessoa natural ou pessoa jurídica, nacional ou estrangeira.
O tipo de sociedade EIRELI deixa de existir por força da LAN (Artigo 41), a qual foi regulamentada pelo Ofício Circular SEI nº 3510/2021/ME, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”).
A alteração dos Artigos 49-A e 50 do Código Civil, pelo Artigo 7º da LLE, teve por objetivo fortalecer o princípio da limitação de responsabilidade do sócio por dívidas da sociedade. A manutenção e fortalecimento desse princípio é fundamental para o incentivo à atividade econômica na medida em que protege o patrimônio do empresário das dívidas contraídas pela sociedade em decorrência das suas regulares operações.
A nova redação do Artigo 50 do Código Civil melhor detalhou os conceitos de “desvio de finalidade” e de “confusão patrimonial”. O desvio de finalidade consiste na prática de qualquer ato com o intuito de lesar credores e na prática de atos ilícitos de qualquer natureza. A confusão patrimonial, por sua vez, ocorrerá mediante (i) pagamento de obrigações de sócios ou administradores ou vice-versa, (ii) transferência de ativos ou passivos sem efetivas contraprestações, salvo de valores irrelevantes proporcionalmente; e (iii) qualquer ato de descumprimento da autonomia patrimonial.
Evidente que ainda resta muito espaço para interpretação pelo judiciário ao se pretender aplicar os preceitos acima a casos práticos. De qualquer maneira, trata-se de um avanço na medida em que deverá exigir mais critério na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e extensão das obrigações ao patrimônio dos sócios.
Voto Plural
A LAN criou o mecanismo do voto plural (conforme Artigo 5º que modificou o Artigo 16, inciso IV da LSA) ao permitir a criação de classes de ações ordinárias de companhia fechada em função da atribuição de voto plural a uma ou mais classes de ações (observados o limite e as condições dispostos no art. 110-A da LSA). Ou seja, poderão ser criadas mais de uma classe de ações com voto plural. Mas em qualquer classe, deverá ser observado o limite de no máximo dez votos por ação.
Trata-se de inovação no direito brasileiro em contraposição à regra de que a cada ação ordinária corresponde um único voto nas deliberações da assembleia geral (Artigo 110 da LSA).
Esse mecanismo é adotado nos EUA e no Reino Unido e tende a beneficiar os fundadores da companhia em processos de abertura de capital na medida em que os acionistas originais poderão manter o controle da companhia ainda que não detenham a maioria do capital social. Como tal, fica reduzida a necessidade de acordo de acionistas, ao menos no que se refere ao exercício do direito de voto. Como cada ação poderá ter até dez votos a influência do acionista nas decisões da assembleia geral será maior do que a sua participação no capital social.
Embora tal dispositivo tenha recebido inúmeras críticas no sentido de que representaria uma quebra de uma exigência da boa governança, a sua aplicação ficou condicionada à uma série de salvaguardas em favor dos minoritários, todas elas também previstas na LAN.
As ações com voto plural podem ser criadas tanto em companhias abertas quando fechadas. No que se refere às companhias abertas, porém, não se admite a criação dessas ações se já houver ações em negociação no mercado. A companhia poderá ter o registro como companha aberta, mas não poderá ter iniciado a negociação das suas ações mediante oferta primária ou secundária.
A LAN estipulou a necessidade de quórum qualificado para a criação de classe de ações com voto plural. Assim, para tal, exige-se maioria absoluta, ou seja, o voto afirmativo de acionistas titulares de metade das ações com direito de voto e de metade das ações preferenciais sem voto ou com voto restrito (reunidos os preferencialistas em assembleia especial). Evidente que os estatutos sociais das companhas podem estipular quórum maior para essas deliberações.
A criação de classe de ações com voto plural bem como a prorrogação do prazo original de existência dessas ações – limitado a sete anos – implicam no direito de recesso dos acionistas dissidentes dessa deliberação, salvo se a possibilidade de criação dessas ações estiver prevista nos estatutos sociais. Nas deliberações sobre a extensão do prazo de existência dessas ações, os seus titulares não terão direito de voto. Ou seja, a limitação do voto plural a sete anos poderá ser prorrogada, mas nessa deliberação não poderão votar os titulares de ações com voto plural e os dissidentes tesão direito de recesso.
Também se prevê a possibilidade de conversão das ações com voto plural em ações sem voto plural nas seguintes hipóteses: (a) transferência das ações a terceiros – salvo se (i) o alienante permanecer como titular indireto das ações e no controle dos seus direitos políticos; (ii) o cessionário já seja titular de ações da mesma classe de ações recebidas em cessão; ou (ii) transferência em caráter fiduciário; e (b) existência de acordo de acionistas entre aqueles com voto plural e acionistas não titulares de voto plural, com a previsão de exercício conjunto de direito de voto.
De forma a evitar que seja burlada a regra de que companhias abertas não podem criar ações com voto plural após o início da negociação de suas ações no mercado a LAN – em seu Artigo 5º, alterando o Artigo 110-A, Parágrafo 11, da LSA — proibiu as seguintes transações: (a) incorporação, incorporação de ações e fusão de companhia aberta que não haja adotado o voto plural e cujas ações ou valores mobiliários sejam negociadas no mercado, em companhia que adote o voto plural; e (b) cessão de companhia aberta que não tenha adotado o voto plural e que tenha ações ou valores mobiliários no mercado para a constituição de nova companhia que adote voto plural ou para incorporação da parcela cindida em companhia que adote o voto plural.
A LAN, também pelo seu Artigo 5º, alterou também o Artigo 110-A, Parágrafo 12, da LSA e proibiu a utilização do voto plural nas deliberações sobre remuneração de administradores e aprovação de transações com partes relacionadas, sendo os critérios de relevância estabelecidos pela Resolução CVM nº 80, Anexo F, de 29/03/2022, com as alterações introduzidas pela Resolução CVM nº 168/22.
O voto plural não poderá ser adotado por sociedade de economia mista ou suas subsidiárias, nem tampouco por sociedades controladas direta ou indiretamente pelo setor público e nem por sociedades em comandita por ações, conforme a alteração trazida pelo Artigo 5º da LAN ao Artigo 110-A, Parágrafo 14, da LSA.
Os quóruns da LSA que foram alterados em decorrência da criação do voto plural, ou seja, que serão determinados considerando a pluralidade de votos, quando existente: (a) Artigo 125, que trata do quórum de instalação das assembleias gerais; (b) Artigo 135, que trata do quórum de instalação das assembleias gerais para reforma do estatuto social; (c) Artigo 136, caput e Parágrafo 2º, que trata de matérias que exigem quórum qualificado de aprovação em assembleias gerais; (d) Artigo 141, que trata do voto múltiplo para eleição de membros para o Conselho de Administração; (e) Artigo 215, Parágrafo 1º, que trata da partilha do ativo na liquidação da companhia; (f) Artigo 243, que trata de presunção de influência significativa na sociedade investida; (g) Artigo 252, que trata da incorporação de ações.
Como não poderia deixar de ser, em seu Artigo 5º, a LAN alterou o Artigo 110-A da LSA para estabelecer que, naqueles dispositivos onde a LSA estipule quóruns com base em percentual de ações ou do capital social, mas sem menção ao número de votos conferidos por ações, o cálculo do quórum deve ser feito desconsiderando a pluralidade do voto. Em outras palavras, a determinação dos quóruns legais previstos na LSA na forma de percentual (seja do capital seja das ações) não levará em conta a pluralidade de votos das ações com voto plural que deverão ser consideradas na sua singularidade.
Uma vez que não houve alteração do limite de ações preferencias que podem ser emitidas (50% do total das ações) o voto plural permitirá que uma minoria de acionistas passe a controlar a companhia
O voto plural é um instituto inovador e, não obstante seja tido como uma evolução no ambiente de negócios, poderá dar margem a abuso por parte de controladores. Eventuais excessos, contudo, deverão ser discutidos perante a CVM e os tribunais até que se alcance uma utilização equilibrada dessa inovação legislativa.
Acúmulo cargos em companhias abertas
O Artigo 5º da LAN alterou o Artigo 138, Parágrafo 3º, da LSA, de forma a proibir, nas companhias abertas, a acumulação do cargo de presidente do conselho de administração e do cargo de diretor-presidente ou de principal executivo da companhia.
Porém, a Comissão de Valores Mobiliários abriu uma exceção para as companhias de menor porte, conforme o parágrafo único do Anexo K da Resolução CVM 80 de 29 de março de 2022 (alterada pela Resolução 168 de 2022) que permitiu a cumulação de cargos nas companhias que tenham auferido receita bruta consolidada inferior a R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais), verificada com base nas demonstrações financeiras de encerramento do último exercício social.
O Artigo 58, inciso II da LAN determinou que a proibição do acúmulo de cargos em companhias abertas passaria a ter efeitos 360 dias após a publicação da LAN, o que ocorreu em 27/08/2021. Com isso, desde 21/08/2022 as empresas passaram a ser obrigadas a adotar estrutura na qual não exista a acumulação do cargo de presidente do conselho de administração e do cargo de diretor-presidente ou de principal executivo da companhia.
A LAN também passou a exigir a eleição de membros independentes para o Conselho de Administração de companhias abertas, matéria regulamentada pela CVM no artigo 5º do Anexo K da Resolução 80 de 2022.
Essa exigência que já era obrigatória para companhias listas no nível 2 e no Novo Mercado, vale agora para todas as companhias abertas que atendem aos seguintes requisitos:
- esteja registrada perante a CVM na categoria A, ou seja, autorizada a negociar valores mobiliários representativos de participação no seu capital social; ou
- possua valores mobiliários admitidos à negociação em mercado de bolsa por entidade administradora de mercado organizado; ou
- possua ações ou certificados de depósito de ações em circulação
Além disso, a CVM indicou que o número de conselheiros independentes no conselho de administração deve corresponder a, no mínimo, 20% (vinte por cento) do número total de conselheiros.
Aumento das matérias de competência da Assembleia Geral
A LAN (Artigo 5º) alterou o Artigo 122 da LSA para colocar sob a competência da Assembleia Geral deliberar sobre as seguintes matérias: (a) transformação, fusão, incorporação e cisão da companhia, sua dissolução e liquidação, eleger e destituir liquidantes e julgar as suas contas; (b) autorizar os administradores a confessar falência e a pedir recuperação judicial, sendo que, em caso de urgência, a confissão de falência ou o pedido de recuperação judicial poderá ser formulado pelos administradores, com a concordância do acionista controlador, se houver, hipótese em que a assembleia geral será convocada imediatamente para deliberar sobre a matéria ; (c) deliberar, quando se tratar de companhias abertas, sobre a celebração de transações com partes relacionadas, a alienação ou a contribuição para outra empresa de ativos, caso o valor da operação corresponda a mais de 50% (cinquenta por cento) do valor dos ativos totais da companhia constantes do último balanço aprovado.
Convocação da Assembleia Geral
Em primeira convocação, na companhia aberta, o prazo foi estendido para 21 dias.
Diretores não-residentes
A LAN alterou o Artigo 146 da LSA para permitir a posse de administrador residente ou domiciliado no exterior, desde que constitua representante legal no Brasil com poderes para receber citações em ações e em processos administrativos da CVM em até três anos após o término do prazo de gestão do administrador (Artigo 5º. da LAN). Cabe lembrar que a procuração não poderá prever a delegação ao procurador das atribuições do administrador, que são indelegáveis.
Livros Societários
A LAN também permitiu-se que os livros societários de companhias fechadas sejam substituídos por registros mecanizados ou eletrônicos, os quais já eram previstos na Instrução Normativa nº 82/2021 do DREI. Essa resolução instituiu os procedimentos para autenticação dos livros pelas juntas comerciais, considerando a necessidade de simplificar, uniformizar, modernizar e automatizar os procedimentos relativos à autenticação dos termos de abertura e de encerramento dos instrumentos de escrituração contábil, dos livros sociais e dos livros dos agentes auxiliares do comércio.
Nesse sentido, dentro do contexto da prioridade dada pelo Governo Federal para a desburocratização e valorização do empreendedorismo, no primeiro semestre de 2019, foram editadas outras medidas que visam melhorar ambiente de negócios no Brasil, como, por exemplo, a Lei 13.818, de 24 de abril de 2019,que dispôs sobre as publicações obrigatórias da Lei das Sociedades Anônimas, ampliando para R$10.000.000,00 o valor máximo admitido de patrimônio líquido para que a sociedade anônima de capital fechado faça jus ao regime simplificado de publicidade de atos societários.
Fundos de investimento
O Código Civil recebeu uma atualização no seu capítulo referente a fundos de investimento, passando a considerá-los como uma comunhão de recursos, constituídos sob a forma de condomínio de natureza especial e afastando expressamente a aplicação das regras relacionadas a condomínios em geral (previstas nos artigos 1.314 a 1.358-A do Código Civil) aos fundos de investimento.
Algumas novidades se destacam, dentre elas a possibilidade do regulamento do fundo de determinar a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas, protegendo-o de responder por obrigações do fundo que excedam a sua participação (não está claro, contudo, se essa limitação prevalecerá em situações mais específicas, como aquelas envolvendo demandas fiscais ou trabalhistas) e a criação de classes de cotas com direitos e obrigações distintas, com possibilidade de constituição de patrimônio segregado para cada classe.
A aplicação das regras gerais de condomínios possibilitava que os cotistas respondessem de forma ilimitada pelas obrigações assumidas pelo fundo de investimento (que não é dotado de personalidade jurídica própria), como se pode observar no artigo 15 da Instrução CVM nº 555/14 que prevê que os cotistas poderiam ser responsabilizados por eventual patrimônio líquido negativo do fundo. Esse cenário foi alterado pela nova norma.
Além disso, garante-se a publicidade e oponibilidade dos atos perante terceiros mediante o registro do regulamento perante Comissão de Valores Mobiliários – CVM, não sendo necessário recorrer a cartórios de registros de títulos e documentos, assim como já regulamentado pela ICVM 615.
A insolvência dos fundos de investimento também passou por alterações na medida em que pode ser requerida judicialmente por credores, por deliberação própria dos cotistas do fundo de investimento, nos termos de seu regulamento, ou pela própria CVM.
O novo Artigo 1.368-E do Código Civil também prevê que os prestadores de serviço do fundo de investimento não respondem pelas obrigações do fundo (exceto pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé).
Assim, eventual passivo do fundo não poderia atingir diretamente o patrimônio dos cotistas, tampouco dos prestadores de serviços do fundo, sendo obrigatório seguir o rito do processo de insolvência caso este não tenha patrimônio suficiente para sanar suas dívidas.
Considerações finais.
Regular é uma atividade complexa pois afeta diretamente todo um setor da economia e, indiretamente, todos os cidadãos. Logo, requer um foco claro e planejamento amplo.
Neste caso, tais objetivos foram cumpridos vez que se apresentou um novo paradigma para a disciplina da intervenção do Estado na economia brasileira visando a defesa da livre-iniciativa oferecendo mudanças positivas ao direito empresarial brasileiro.
A substituição da EIRELI pela Sociedade unipessoal gerou um grande dinamismo no mercado, tendo sido o tipo societário adotado por 56% das empresas Ltdas. que foram abertas no Brasil em 20211. Além disso, outras inovações tais como o voto plural e a limitação ao acúmulo de cargos em companhias abertas aumentam as opções de estruturas empresariais disponíveis no Brasil.
A regulamentação dos fundos de investimento trouxe respostas a questionamentos bastante antigos da indústria de fundos, gerando maior estabilidade e previsibilidade na realização das operações.
Trata-se, assim, de norma que busca garantir liberdade de empreendedores e empresas no exercício da atividade econômica, pressupostos necessários para o crescimento e desenvolvimento do país.