Por Leonardo Neri e Barbara Oliveira – 29/04/2020
A relação de consumo é formada, em sua regularidade, por três elementos essenciais, quais sejam: o consumidor, o fornecedor e o produto ou serviço que os conecta. Entende-se por consumidor aquele que é o destinatário final do produto ou do serviço prestado. Já o fornecedor é todo aquele que insere produto ou serviço no mercado de consumo com habitualidade.
Neste sentido, o fornecedor detém de um amplo conhecimento da cadeia produtiva e da própria prestação do serviço, se comparado ao consumidor, que é visto na relação como a parte hipossuficiente, por possuir uma perspectiva restrita e limitada da cadeia de consumo. Por tal razão, originariamente, a relação de consumo presume um desequilíbrio de posições entre o fornecedor e o consumidor. Assim, para equilibrar a relação, o Código de Defesa do Consumidor provém certos direitos aos consumidores, a fim de tornar horizontal a hierarquia na relação. A inversão do ônus da prova, a teoria da aparência, dentre outros, são alguns exemplos desse reequilíbrio dado pela norma.
Além da legislação específica que regulamenta a matéria, a relação de consumo é norteada também por uma série de princípios, que busca, igualmente, estabelecer equilíbrio na relação havida entre consumidor e fornecedor, como é o caso dos princípios da boa-fé, proporcionalidade e transparência.
No entanto, em situações atípicas e imprevisíveis, como a atual situação vivenciada mundialmente em razão da pandemia de COVID-19, verifica-se o consequente abalo das mais diversas relações contratuais, ante a alteração da realidade fática vivenciada pelas partes, em decorrência de fatores alheios à suas vontades.
Nas relações de consumo, essas modificações podem vulnerabilizar o fornecedor, sendo que a manutenção plena dos direitos do consumidor pode, neste caso, desequilibrar a relação de consumo, tornando-a inviável ao fornecedor, ante a sua hipossuficiência temporária e relativa.
Diante da atipicidade da situação, deve-se mitigar e relativizar os direitos do consumidor, analisando, em cada caso, as fragilidades enfrentadas pelo fornecedor no enfrentamento da crise.
Especialmente no setor de turismo e hotelaria, o cenário é de grande preocupação. O setor que antes representava grande parte das movimentações financeiras do país, chegando a atingir R$ 270,8 bilhões de Produto Interno Bruto (PIB) em 2019, conta hoje com uma estimativa de redução de 38,9% de faturamento devido aos impactos da pandemia, segundo estudo realizado pela FGV Projetos. Segundo os especialistas, o setor pode levar até um ano para se estabilizar após o término da crise.
Neste cenário, o fornecedor também se encontra em desvantagem, especialmente, diante das intervenções governamentais que visam conter a propagação do vírus causador da pandemia, tornando inviável a aplicação de determinadas garantias legais aos consumidores.
A relativização de direitos do consumidor e, ainda, dos termos contratuais eventualmente ajustados, funda-se na ocorrência de fato imprevisível de força maior, que acaba por onerar demasiadamente a uma das partes da relação, tornando inviável o cumprimento da obrigação da forma inicialmente ajustada. Entende-se como evento de força maior, aquele em que não se é possível evitar ou impedir seus efeitos, conforme descrito no parágrafo único do art. 393 do Código Civil.
Em termos gerais, são situações inesperadas e imprevisíveis, alheias à vontade das partes, e que, por possuírem tais características, não possibilitam a adoção de medidas preventivas ou impeditivas em relação ao fato ocorrido. Pode-se afirmar, portanto, que a pandemia do Coronavírus é uma situação de força maior, tendo em vista a impossibilidade lógica de prever a incidência e a proporção do vírus, tampouco as consequências drásticas que traria.
Não basta, no entanto, a existência da pandemia para que se afastem direitos do consumidor, ou para que se justifique o inadimplemento de obrigação contratual. É necessário que a impossibilidade de cumprimento da obrigação decorra diretamente do evento imprevisível. Ou seja, é preciso ter nexo de causalidade entre o inadimplemento e o evento imprevisível, devendo ser assegurado o cumprimento das obrigações não afetadas.
Na prática, as restrições de funcionamento de determinadas atividades, bem como a recomendação de isolamento social, resultaram no cancelamento de diversos serviços prestados por fornecedores que tiveram seus estabelecimentos fechados por tempo indeterminado, mas que, por outro lado, não podem arcar com os prejuízos e as consequências de fato que não poderia prever e evitar.
Por essa razão é que foi criada a Medida Provisória nº 948/2020, que permite aos fornecedores adotarem medidas alternativas em caso de cancelamento de serviços, reservas ou eventos, como a disponibilização de crédito ou a remarcação. A MP 948/2020, entre outras disposições, também afasta as penalidades impostas ao fornecedor pelo CDC, além de afastar a incidência do dano moral para os casos de cancelamento.
A MP 948/2020 corrobora com a ideia de que, diante da atipicidade da situação, exigir do fornecedor o cumprimento da obrigação como determina a lei inviabilizaria suas atividades. Isso, pois, a exigência de reembolso pelo consumidor, somado à queda do faturamento resultante da restrição das atividades, levaria o setor a um colapso de difícil reparação, com graves reflexos na economia do país.
No entanto, a existência de regulamentação legal que ampara o fornecedor não impede o surgimento de litígios que resultam da insatisfação do consumidor com relação às medidas adotadas pelo fornecedor. Portanto, é necessário que o fornecedor mantenha a constante e objetiva comunicação com seus consumidores, sendo recomendado, ainda, a adoção de política emergencial de resolução de conflitos, por meio de canais de negociação de contratos e, se necessário, o uso de plataforma jurídica de mediação, como forma de manter a fidelização de seus clientes, minimizando o risco de um efeito devastador, pelo contingenciamento elevado diante do acúmulo de demandas na esfera judicial.