Por Christian Fernandes Gomes da Rosa – 01/06/2020
O combate, no âmbito da emergência sanitária introduzida pela COVID-19 demandou um esforço da União, Estados e Distrito Federal, bem como dos Municípios, seguindo a orientação da Organização Mundial da Saúde, de 7 de março de 2020, que atribuiu ao isolamento social um papel fundamental nos esforços para retardar a disseminação da COVID-19. No ambiente federativo brasileiro, o exercício das respectivas competências se deu, de maneira pouco coordenada, por meio de atos de polícia sanitária. Surge então a dúvida sobre a possibilidade dessas limitações, que também implicam restrição a direitos constitucionais como o da livre iniciativa e da propriedade privada.
Na esteira da recomendação da OMS, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de lei convertido na Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre a possibilidade da adoção de medidas de isolamento ou quarentena, para aquelas pessoas e bens contaminados e, com relação à segunda, para aqueles com suspeita de contágio. O rol de medidas sanitárias, exemplificativo, condicionou que sejam adotadas restrições “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”, consoante o §1º do artigo 3º. Sobreveio então a Portaria nº 356 do Ministério da Saúde, em suma exortando as autoridades locais à execução das medidas pertinentes, nos limites de suas competências.
Nas semanas seguintes, somaram-se dezenas de atos foram publicados. Dentre eles, são exemplos o do Distrito Federal (Decreto nº 40.509), do Estado de São Paulo (Decreto nº 64.881) e do Município de São Paulo (Decreto nº 59.298), determinando que estaria suspenso “o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais de bens e mercadorias, atacadistas, varejistas e ambulantes, e prestadores de serviço em funcionamento no Município de São Paulo.” São atos de polícia sanitária, limitando excepcionalmente o exercício de direitos constitucionais como o da livre iniciativa e da propriedade privada, assegurados pelos artigos 1º e 170 da Constituição.
E não há dúvidas de que a promoção da saúde tem assento relevante no Direito Brasileiro, em especial a partir da Constituição, em que o direito à saúde é elencado como direito social, positivado no caput do artigo 6º. Os direitos sociais, intrinsicamente ligados à própria noção de dignidade da pessoa humana, deflagram o correlato dever do Estado de promover a sua tutela. E, neste caso, não há que se falar em liberdade do governante para dispor livremente, eis que se trata de uma opção do próprio Poder Constituinte no sentido de que caberá à União, Estados e Municípios a provisão dos meios razoavelmente disponíveis de promoção da saúde. Tais atos compõem o exercício de poder de polícia sanitária, caracterizados por sua relativa discricionariedade, munidos de autoexecutoriedade e induzindo condutas (em geral negativas) dos administrados, coercitivamente. Mas, diante das medidas, levantou-se dúvida sobre a constitucionalidade de sua execução por Estados e Municípios.
Quanto a isso, os artigos 23, 196 e 198, inciso I, da Constituição não deixam dúvida de que a tutela do direito à saúde, por meio da execução de políticas públicas, é um campo aberto para a atuação, material, comum de todos os entes. Tanto assim o é que todos os entes políticos integram o Sistema Único de Saúde (SUS).
Assim, embora em tese lícitas e necessárias ao interesse público, esse exercício do poder de política sanitária tem impacto negativo direto sobre outros direitos, como o da livre iniciativa e da propriedade privada, igualmente tutelados pela Constituição. Se está claro que ao agente político cumpre o dever de tomar as medidas necessárias à contenção da epidemia, de outra parte é preciso avaliar a eventual responsabilidade patrimonial dos Estados e Municípios pelos danos causados, o que se faz à luz do artigo 37, §6º, da Constituição.
Há um amplo debate na doutrina a respeito dos fundamentos, limites e requisitos para a deflagração da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado por danos causados aos administrados. Resta claro, pela aplicação do texto constitucional, que se trata de responsabilidade objetiva, que independente de culpa e mesmo da ilicitude da conduta. Como aplicação do Direito a recompor a observância do Princípio da Igualdade, seriam indenizáveis os danos patrimoniais sofridos de maneira especial e anormal por parte de alguns administrados, sendo ainda necessária a ausência de excludentes de responsabilidade.
Assim, observados os parâmetros constitucionais e demais princípios que devem guiar a conduta do Poder Público, como a razoabilidade e legalidade, é lícito aos entes subnacionais – Estados, Distrito Federal e Municípios – estabelecerem limitações à atividade econômica, desde que devidamente munidos de razões (científicas e de saúde pública), observados os meios proporcionais à obtenção do fim desejável, tudo em conformidade com a Constituição e demais normas aplicáveis. Isso, entretanto, não implica que direitos como a livre iniciativa e propriedade privada, garantia sua função social, não mereçam eventual reparação, bem caracterizada essa hipótese quando os danos sofridos individualmente, em prol de um benefício coletivo, tenha sido excepcionalmente onerosa, o que demandará esforço próprio de avaliação diante de cada caso concreto.